Succession: Uma Temporada de Som e Fúria


* Contém SPOILERS da quarta temporada de Succession

Sinistramente,
de olhos abertos, ele observa, cego.

John Berryman, Dream Song 29

As três primeiras temporadas de Succession são algumas das melhores temporadas de TV já produzidas. O suspense, o humor e o drama se combinam e resultam em uma tragédia shakespeariana sobre os atritos e limitações emocionais dos “reis e príncipes” de um império empresarial. Surpreendentemente, a quarta temporada faz com que as temporadas anteriores pareçam apenas a preparação para a atração principal.

O falecimento de Logan Roy (Brian Cox) no terceiro episódio torna o processo de sucessão da Waystar Royco inevitável, colocando todos os candidatos a novo CEO em polvorosa. A quarta temporada se torna então um tour de force, durante o qual os três filhos principais partem para o tudo ou nada contra players externos e uns contra os outros.

Porém, a competição pelo “trono” é apenas o elemento que mantém a trama seguindo em frente. A história está realmente interessada em como essas pessoas ricas, inseguras, poderosas e traumatizadas lidam com os próprios sentimentos e com seus relacionamentos interpessoais. Há um grande nível de atrofia emocional não apenas nos herdeiros, mas também no magnata que saiu da pobreza e construiu um império.

Logan Roy: Vida e Filosofia

A temporada final de Succession também nos dá mais insights sobre o passado do lendário Logan Roy. Novos aspectos de sua traumática infância são revelados, ajudando tanto os personagens quanto o espectador a entenderem melhor a brutalidade e a impiedade que marcaram a personalidade do protagonista.

Como se não bastassem os abusos físicos e outras experiências traumáticas pelas quais ele passou, o personagem ainda carregou desde a infância a culpa pelo falecimento da irmã. Independente de ter transmitido ou não a doença que a levou, esse é o tipo de culpa com a qual ele tinha, a grosso modo, duas formas de lidar: perdoando a si mesmo e buscando algum tipo de redenção; ou abraçando a ideia de que nada poderia redimi-lo, o que lhe dá uma justificativa para sequer tentar ser uma boa pessoa.

Logan, evidentemente, escolheu a segunda opção. Como em muitos casos da vida real, o trauma de uma infância vivida na pobreza e sem uma saudável estrutura familiar o levou a buscar segurança e estabilidade no poder econômico. É como se ele estivesse eternamente fugindo da pobreza, em uma eterna corrida contra o restante do mundo. Mesmo já sendo bilionário, ele sempre quer mais, pois foi querendo e conseguindo “mais” que ele superou as dificuldades de sua infância e juventude.

Isso nos faz lembrar de uma inesquecível fala de Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), protagonista de Sangue Negro: “Eu tenho uma competição em mim. Eu não quero que ninguém mais alcance o sucesso. Eu odeio a maioria das pessoas.”

succession emocional 2

É por isso que a relação entre Logan e os filhos é marcada pelo abuso emocional. Ele os ama, mas ele também não quer ser superado por eles. Parte dele quer ter orgulho dos filhos, mas outra parte não quer que esse orgulho venha acompanhado de uma ameaça a seu poder e a sua posição como número um. A competição sempre prevalece.

Tudo o que os filhos buscam é um pouco de amor e aprovação. Porém, em mais de uma ocasião, Logan utiliza essas necessidades como moeda de troca ou instrumento de poder. Talvez ele até reconheça internamente os danos que está provocando, mas seus instintos de autopreservação são mais fortes. Ele precisa manter, a todo custo, sua autoimagem de poderoso e insuperável.

Um dos principais exemplos disso está no último episódio da segunda temporada. Nos minutos iniciais, temos uma rara visão de um Logan atemorizado e acuado. Ele recebe uma ligação de um dos maiores acionistas da Waystar e tenta apaziguar os donos do dinheiro. Porém, diante dos escândalos enfrentados pelo grupo, o que os grandes acionistas decidiram é que é a cabeça de Logan Roy que precisa rolar para que a crise seja superada.

Diante disso, Logan passa o restante do episódio tentando encontrar uma ou mais cabeças para serem “sacrificadas” em seu lugar. Sem compartilhar que os acionistas o escolheram como bode expiatório, ele junta todas as principais lideranças da empresa, inclusive seus filhos, e tenta encontrar alguém para assumir a culpa pelos crimes investigados. No final, o escolhido é seu filho Kendall Logan Roy (Jeremy Strong), o principal candidato a sucedê-lo na liderança do conglomerado.

Mais tarde, no oitavo episódio da terceira temporada, Logan compartilha com Kendall um pouco de sua visão de mundo. Enquanto Kendall tenta se manter moralmente superior, a fala de Logan mais uma vez revela a eterna competição em seu interior e como o dinheiro tem um papel central em sua vida.

A vida não é uma questão de heróis em montaria. É um número em um pedaço de papel. É uma briga por uma faca na lama.

Trama Fantasma

A morte de Logan deixa os irmãos em uma situação mais do que complicada. Ainda de luto e emocionalmente abalados, eles precisam concluir a venda de boa parte do império, que era o desejo de Logan e dos grandes acionistas, enquanto fazem um último esforço para se mostrarem dignos do respeito do pai. A recém formada aliança entre os irmãos é então posta a prova, resultando em uma intensa sequência de eventos ao longo de alguns poucos dias.

Primeiramente, é notável como Kendall e Roman Roy (Kieran Culkin) atrasam os próprios planos ao tentar imaginar o que Logan faria se ainda estivesse vivo. O grande problema é que eles nunca entenderam completamente como a cabeça do pai funcionava, restando-lhes apenas se basear na ideia que eles têm sobre ele. De repente, Logan só existe como uma imagem projetada, uma espécie de fantasma emocional, e o Logan de verdade não está mais presente para garantir que fique tudo bem no final.

É tentando obter a aprovação desse Logan imaginário que os dois irmãos mudam de estratégia e resolvem não mais vender o negócio da família. Eles precisam provar para si mesmos que são capazes de gerenciar o negócio com o mesmo nível de sucesso que o pai. Eles não precisam nem do dinheiro e nem do poder, e o próprio Logan já havia decido abrir mão da maior parte do império, mas o apego emocional em um momento de dor é mais forte do que qualquer raciocínio lógico.

Kendall só consegue desenvolver uma estratégia viável quando para de imaginar o que o pai faria e começa a seguir os próprios instintos diante de uma realidade inédita para todos os envolvidos. Ainda assim, ele demonstra bastante relutância não apenas devido aos fracassos de seu passado recente, mas também porque ele não quer se transformar completamente em seu pai.

Porém, as decisões que ele tem que tomar para alcançar seu objetivo o aproximam significativamente do estilo e das ações de Logan, e ele está bem ciente disso. Kendall vai lentamente percebendo que fazer o necessário para atingir seus objetivos é incompatível com sua tentativa de se ver como uma “boa pessoa”. Depois de algumas traições e decisões impulsivas por parte dos irmãos, ele abandona essa “boa pessoa” e faz a mesma escolha que Logan fez muito tempo antes.

succession som e fúria

Dentre os irmãos, o mais severamente afetado pelo falecimento de Logan é Roman. Durante a maior parte da temporada, ele se mantém em negação e não consegue realmente processar a perda do pai. Suas atitudes vão ficando cada vez mais impulsivas e inconsequentes, culminando em uma vitória eleitoral que é aparentemente boa para os irmãos e muito ruim para o restante do país.

Com bravata e um aparente niilismo, ele tenta projetar uma imatura imagem de poder e sucesso, como se nada mais importasse. Com essa atitude, ele tenta se colocar acima de todo o drama que se desenrola ao seu redor, criando a ilusão de que ele é mais maduro, mais competente e mais visionário do que todos os outros candidatos ao “trono”. Inevitavelmente, o custo emocional finalmente o alcança, fazendo-o desmoronar de forma bem mais catastrófica que os demais.

No fim das contas, com suas piadas impróprias e jeito displicente, ele apenas tentava negar os sentimentos e as inseguranças que nunca teve espaço para manifestar no seio familiar. Apesar de ainda estar tentando se punir por não ser o filho que seu pai gostaria que ele fosse, seu desmoronamento também pode significar que ele terá que lidar com suas pendências psicológicas e finalmente alcançará algum nível de amadurecimento emocional.

Enquanto Connor (Alan Ruck) segue tentando materializar o mundo de sonhos que só existe em sua cabeça, Shiv (Sarah Snook) precisa lidar com seu próprio turbilhão de emoções. Com uma gravidez não planejada e deixada de escanteio pelos irmãos, ela encontra algum conforto ao reatar sua relação com Tom (Matthew Macfadyen) e tenta sua própria jogada ao estabelecer uma aliança com Lukas Matsson (Alexander Skarsgård), o possível comprador da Waystar.

Ela e Tom entram em uma nova lua de mel, mas ainda de forma superficial, deixando todos os problemas e toda a tensão que afligem o casal sob uma nova superfície de atenção e normalidade. Porém, diante das incertezas geradas pela fase de transição pela qual todos os personagens estão passando, essas tensões finalmente atingem um ponto crítico e explodem em uma cena que, assim como muitas outras de Succession, deve entrar para a História da televisão.

A impressão que fica é que a única forma do relacionamento entre os dois realmente funcionar é se eles encontrarem algum estranho e excêntrico equilíbrio, já que as limitações emocionais de ambos impedem que eles estabeleçam uma conexão completamente saudável e convencional. Em alguns momentos, as interações entre eles chegam a lembrar o estranho equilíbrio encontrado pelo casal no centro do filme Trama Fantasma, com a diferença de que nesse caso o resultado seria ainda menos romântico.

Diante de tudo isso, Kendall parte para um último embate contra Shiv e Matsson, sempre se considerando o mais apto e mais merecedor candidato ao trono.

Sabe, Hugo, a vida não é boa, é incerta. As pessoas que dizem te amar também fodem com você. Então esse é um plano explícito para foder com a aquisição e eu “dominar o mundo”.

Som e Fúria

Era de se imaginar que a última temporada de Succession seria razoavelmente intensa, mas a partir do terceiro episódio o espectador é colocado em uma montanha-russa para a qual ninguém estava preparado. De repente, os três irmãos que estavam tentando superar o pai precisam lidar com o luto enquanto conduzem uma sensível negociação de bilhões de dólares e com inúmeros interessados.

A dor e a melancolia são intercaladas por idas e vindas, vitórias e derrotas, mentiras e traições. Com cada episódio cobrindo aproximadamente um dia na vida dos personagens durante um momento de tristeza e mudanças, a narrativa se torna visceral e emocionalmente desgastante. Em alguns momentos, a trama chega a lembrar produções como O Urso e Joias Brutas, incorporando o caos narrativo ao caos emocional.

Se as temporadas anteriores trataram de como os irmãos lidavam com o pai, essa última é inteiramente focada em como eles lidam uns com os outros e com os demais entes queridos ao seu redor. Sob o choque do luto e ainda mais desconectados da realidade, eles vão improvisando planos e tomando decisões absurdamente impulsivas até os últimos momentos da série. Em determinados pontos, eles chegam a discutir ideias razoavelmente idiotas como se fossem razoavelmente visionárias.

A questão é que todos nós estamos sempre em busca daquilo que não temos e/ou nunca tivemos. Os irmãos Roy sempre tiveram acesso a muita riqueza, sem terem que se preocupar com “detalhes” como educação, emprego e subsistência. O que eles nunca tiveram foi o amor e a atenção dos pais, ou mesmo a noção de que eles são merecedores desse amor. Consequentemente, eles crescem incapazes de estabelecerem vínculos emocionais saudáveis e com uma baixa inteligência emocional.

Para obter o amor parental, eles tentam se tornar aquilo o que seu pai já ama e respeita. Se serem filhos não é o suficiente para serem amados, eles tentam mostrar que são muito mais que isso. Kendall, Shiv e Roman tentam se tornar CEOs da Waystar Royco. De forma mais disparatada, Connor tenta se tornar presidente da república. Nesse processo, eles deixam pelo caminho oportunidades reais de alcançarem felicidade e maturidade.

succession scorpion escorpião shiv | som e fúria

Com a ajuda das promessas vazias feitas pelo pai, cada um deles cresce se considerando o sucessor por direito, cada um se achando o mais capaz e o mais merecedor. A competição que tomava conta da vida de Logan acaba tomando conta das interações entre os irmãos. Os genuínos momentos de amor fraternal são sempre ameaçados pelo pensamento que permeia a cabeça de cada um deles: “deveria ser eu”.

O que eles não entendem é que o dinheiro segue em frente sem se importar com quem se senta no trono. Não é porque o trono tem algum valor sentimental para eles que o resto do mundo vai parar e garantir que seus sonhos se realizem. Enquanto eles se preocupam em provar para si mesmos que são dignos do amor e do respeito de Logan, os acionistas da Waystar estão muito mais interessados em completar a venda bilionária que vai deixar todos eles mais ricos, inclusive os “perdedores”.

No final, depois de tantas brigas, alianças, planejamentos e reviravoltas, os irmãos mais uma vez são reduzidos a seus instintos mais básicos. A competição enraizada neles prevalece e o escorpião faz o que o escorpião faz. Nunca foi uma questão de merecimento. A questionável “vitória” não foi para quem elaborou o plano mais genial ou orquestrou a melhor das jogadas, mas sim para aqueles que enxergaram as coisas se alinhando e aproveitaram as melhores oportunidades.

[A vida] é um conto
Narrado por um idiota, cheio de som e fúria
Sem nenhum significado.

William Shakespeare, Macbeth