The Last of Us: O Inimigo Sempre Vence
Há apenas um deus, e seu nome é Morte. E há apenas uma coisa que nós dizemos para a Morte: “hoje não”.
Se os filmes de terror e as histórias pós-apocalípticas realmente servem para preparar as pessoas para pandemias e para outros cenários de emergência, então a primeira temporada de The Last of Us é uma preparação e tanto. Além de acompanhar a dupla Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey) atravessando uma América devastada pelo fim da civilização, a trama mostra vários personagens secundários tendo que lidar com o próprio fim, encarando a morte de uma forma direta e inequívoca. Em vários sentidos, essa não é uma história de superação.
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O jogo The Last of Us é exatamente o tipo de mídia que pode preparar as pessoas psicologicamente para lidar com emergências globais ou locais, e agora uma emergência global da vida real influencia a adaptação do jogo para a TV. Muitos dos detalhes incluídos na produção, especialmente as ótimas cenas de abertura dos primeiros episódios, são extremamente familiares para quem acabou de sobreviver à pandemia de COVID-19. Uma pandemia como essa já era esperada há algum tempo pelos especialistas, que hoje já se preocupam com a próxima epidemia global.
Se a série consegue manter o nível de qualidade do jogo é justamente pelo envolvimento dos criadores e roteiristas Neil Druckmann, que também é o criador do jogo, e Craig Mazin, que recentemente havia criado e roteirizado a aclamada minissérie Chernobyl. Dramatizando eventos reais, Chernobyl mostra um momento no qual a humanidade realmente ficou frente a frente com uma ameaça existencial, com um desastre nuclear ameaçando deixar grandes partes da Europa e da Ásia completamente inabitáveis, o que geraria imprevisíveis efeitos colaterais no restante do mundo.
Esse terror da vida real também está presente em filmes como The Rover: A Caçada e Ao Cair da Noite. Em The Rover, um completo colapso político-econômico transforma a Austrália em uma terra sem lei, levando o protagonista a suportar uma existência sem sentido e sem esperança. Mesmo as ações mais corriqueiras o levam a questionar o sentido de seguir em frente diante daquela situação: “O que você sente quando acorda pela manhã? Quando seus pés tocam o chão… ou antes disso, quando você está deitado lá, pensando no momento em que seus pés tocarão o chão, o que é que você sente?”
Já em Ao Cair da Noite, o grande vilão é o medo. Uma emergência de grande escala faz uma família se isolar em uma casa na floresta e tratar qualquer estranho como uma grande ameaça. Independente da tal emergência ser uma pandemia ou um apocalipse zumbi, a ameaça jamais precisa alcançá-los para fazer vítimas. O medo e a paranoia que eles sentem em relação ao mundo exterior é mais do que o suficiente para deixar um rastro de mortos e feridos.
O faroeste The Last of Us
Além de Joel e Ellie estarem em uma perigosa jornada rumo ao oeste dos EUA, a trama de The Last of Us possui outras semelhanças com vários faroestes modernos. Assim como The Rover, novos faroestes como Bravura Indômita, Logan, The Nightingale, Relatos do Mundo e, mais recentemente, a minissérie A Inglesa mostram duplas inusitadas tendo que atravessar grandes distâncias em lugares violentos e longe do alcance da lei. Até mesmo a série The Mandalorian, também estrelada por Pedro Pascal, se encaixa nesse padrão.
Isso reforça as semelhanças entre o mundo pós-apocalíptico e o mundo pré-civilização, nos quais a humanidade não pode contar com as infraestruturas físicas e institucionais que nos possibilitam vidas relativamente confortáveis. Se hoje as maiores preocupações de muitas pessoas são com a rotina do trabalho, ou com quais roupas irão sair, ou quais filmes irão assistir, em cenários como os de The Last of Us a preocupação é sempre com a sobrevivência até o dia ou até o minuto seguinte.
Nessas situações, cada decisão pode ser uma decisão de vida ou morte. Isso também nos lembra a minissérie 1883, que mostra uma típica jornada de imigrantes pelas Grandes Planícies americanas no Século 19. A diferença é que aqueles imigrantes eram incentivados pelos sonhos e pelas promessas de uma vida melhor em uma terra distante, onde as oportunidades seriam bem diferentes daquelas existentes em seus países ou em suas cidades de origem.
Em cenários pós-apocalípticos, as motivações são bem menos inspiradoras, pois o ato de sobreviver parecerá muito menos a conquista de um sonho e muito mais o adiamento de algo inevitável. Enquanto parte dos sobreviventes podem realmente estar lutando pela recuperação de tudo aquilo que a humanidade perdeu, uma outra parte não verá motivos para recuperar nada, se entregando à morte ou a uma simplória e medíocre selvageria animal.
O inimigo sempre vence
A trama de The Last of Us não é sobre a sobrevivência em um mundo infestado por “infectados” que se assemelham a zumbis, mas sim sobre a sobrevivência em um mundo “infestado” por pessoas desesperadas, traumatizadas e sem perspectivas de futuro. Pessoas diferentes tiveram reações diferentes à queda da civilização, e agora, vinte anos depois, apenas os sobreviventes de uma tragédia sem precedentes tentam seguir em frente, todos carregando cicatrizes físicas e psicológicas.
Na franquia Star Trek, o exercício militar Kobayashi Maru é um dos testes pelos quais os cadetes da Frota Estelar devem passar antes de serem graduados. O único problema é que não há como sair vitorioso desse desafio. A simulação computacional sempre cria um cenário no qual é impossível a tripulação derrotar o inimigo. O objetivo do teste não é avaliar as capacidades estratégicas dos futuros comandantes, mas sim avaliar suas atitudes diante da derrota iminente. Para ser aprovado, o candidato deve mostrar firmeza de caráter e fidelidade aos princípios da Frota Estelar mesmo diante da morte certa.
A humanidade enfrenta um cenário semelhante na sátira Não Olhe Para Cima, na qual um gigantesco meteoro ameaça acabar com a vida na Terra. Refletindo as tendências mais negacionistas das sociedades humanas nos últimos anos, a trama cria um cenário (não muito) absurdo, no qual parte da humanidade simplesmente se recusa a acreditar que o meteoro está a caminho. Quando o objeto cósmico finalmente se torna visível a olho nu no céu, a solução adotada pelos negacionistas é a de “não olhar para cima” e fingir que nada vai acontecer.
Mas todos esses cenários pessimistas não servem apenas para nos preparar para o pior. Além de nos ajudar a desenvolver a nossa inteligência emocional, eles nos incentivam a não permitir que o pior aconteça. Na vida real, as ameaças vindas de pandemias, guerras e aquecimento global são perfeitamente mitigáveis, desde que haja o interesse em mitigá-las. Não há nenhuma razão lógica para simplesmente esperarmos que uma ou mais dessas ameaças causem o fim da civilização.
Na série The Last of Us, o aquecimento global é um dos fatores que permitem que um fungo do gênero Cordyceps infecte a humanidade. Na nossa realidade, uma das grande preocupações, ao lado dos eventos climáticos extremos, é que o derretimento de solos congelados libere doenças que já estavam há muito tempo controladas ou mesmo agentes infecciosos com os quais a humanidade jamais teve contato.
De qualquer forma, talvez a humanidade realmente esteja destinada à extinção, assim como cada um de nós está destinado a dar um último suspiro. Até lá, nosso dever é sempre fazer o máximo possível para evitar a chegada desse momento.
A citação no início desse artigo é uma das mais populares da série Game of Thrones. Mas a temática me lembra uma citação bem mais relvante da mesma série, vinda de uma conversa entre Jon Snow (Kit Harington) e Beric Dondarrion (Richard Dormer):
Beric: Somos soldados. Temos que saber pelo que estamos lutando. Não estou lutando para que algum homem ou mulher que mal conheço se sente em um trono feito de espadas.
Jon Snow: Então pelo que você está lutando?
BD: Pela vida. A morte é o inimigo. O primeiro inimigo… e o último.
JS: Mas todos nós morremos.
BD: O inimigo sempre vence. E ainda assim temos que combatê-lo. Isso é tudo o que sei. Você e eu não vamos encontrar muita alegria enquanto estamos aqui, mas podemos manter outros vivos. Podemos defender aqueles que não podem se defender.