True Detective: Verdadeiros Detetives
As histórias de detetives representam um gênero à parte na ficção. Desde o surgimento do popular personagem Sherlock Holmes em 1887, inúmeros autores ajudaram a definir e redefinir o gênero ao longo dos últimos 127 anos, passando por personagens como Hercule Poirot e Charlie Chan. Gosto muito desse tipo de história, apesar de não ter assistido alguns do principais exemplares dos filmes noir, que representam a era de ouro do gênero. Eventualmente, hei de corrigir esse erro.
Por enquanto, vamos falar das histórias que conheço e da relação entre elas e a série televisiva do momento, True Detective.
Detetives
Provavelmente meu gosto pelo gênero tenha começado com os livros infanto-juvenis da Coleção Vagalume, especialmente os escritos pelo autor Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Nonato. Só de lembrar dos títulos de O Mistério do Cinco Estrelas, O Rapto do Garoto de Ouro e Um cadáver ouve rádio já bate uma nostalgia. Um dos melhores dessa coleção é O Escaravelho do Diabo, da autora Lúcia Machado de Almeida, que li inúmeras vezes. Já Eles Morrem, Você Mata, da autora Stella Carr, não faz parte da coleção citada, mas também é um dos meus favoritos. Só depois desses é que li Um Estudo em Vermelho, o livro que apresentou ao mundo o personagem Sherlock Holmes.
Nesse gênero, dos muitos filmes que já assisti, alguns merecem destaque. Muitos seguem a mesma linha de O Colecionador de Ossos ou Beijos que Matam, nos quais acompanhamos instigantes investigações conduzidas por brilhantes investigadores, e que quase sempre resultam na identificação do culpado como sendo uma pessoa extremamente próxima a eles. São bem divertidos, mas não chegam a se sobressair.
Dois que se sobressaem são os fantásticos Medo da Verdade e Los Angeles: Cidade Proibida, que estão entre os meus favoritos. Outro favorito é Amnésia, que inova fantasticamente na técnica narrativa e vai fundo na psique do nosso investigador. Outro destaque é Seven: Os Sete Pecados Capitais, que tem uma história sombria e um desfecho impactante. Apesar de não estarem entre os meus favoritos, vale mencionar também os ótimos Insônia e 88 Minutos.
Recentemente, encontrei os filmes para televisão do personagem australiano Jack Irish. Assisti ao primeiro deles, Jack Irish: Bad Debts, e, apesar de não ser nada surpreendente, apresenta uma história de detetive simples e eficiente, com um certo tom de realismo e um clima bem australiano. Outro desses filmes será lançado esse ano. Mais divertida e muito mais popular é a série Sherlock, que traz o clássico personagem para os dias atuais com uma linguagem dinâmica e um ar pop, mas sem sacrificar a elegância ou a inteligência do personagem e das histórias.
Esse tipo de história é bem versátil e alguns dos seus melhores e mais clássicos exemplares são combinações com outros gêneros. É o caso do clássico O Silêncio dos Inocentes, um terror psicológico no qual uma novata agente do FBI utiliza a ajuda de um psicopata para tentar deter um outro. Poderia escrever por horas sobre esse inesquecível filme.
Outro exemplo é Blade Runner: O Caçador de Andróides, uma ficção científica com um elegante clima noir e interessantes elementos filosóficos. Já em O Nome da Rosa, um racional monge franciscano se vê como investigador durante uma misteriosa série de assassinatos em um mosteiro italiano no século XIV.
Mesmo elementos de fantasia e de artes marciais podem ser combinados ao gênero, como no ótimo Dragon e o divertido Detetive D e o Império Celestial, apesar do resultado não chegar nem perto dos filmes mencionados anteriormente. Com elementos sobrenaturais, temos o ótimo Possuídos, no qual um detetive da polícia descobre que o criminoso que ele está perseguindo é na verdade uma entidade maléfica de milhares de anos que pode facilmente possuir qualquer pessoa.
Nessa linha, temos também o sombrio e surpreendente Coração Satânico, no qual um detetive particular de Nova York é contratado para localizar um homem desaparecido na Luisiana, mas acaba sendo seguido por um rastro de morte que envolve ocultismo e magia negra. Dos filmes citados aqui, apenas Amnésia possui um final tão surpreendente e inquietante quanto Coração Satânico. Esse último também é o filme cujo clima mais se aproxima da série True Detective, apesar dela não possuir elementos sobrenaturais.
True Detective
True Detective acompanha os detetives Martin Hart (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey) na investigação, ao longo de 17 anos, do assassinato ritualístico de uma mulher na zona rural do estado da Luisiana.
Mas quais são os motivos do estrondoso sucesso dessa série? O que ela pode ter de tão inovador que a difere de todas essas outras histórias? A primeira diferença é que ela aproveita da melhor forma possível o formato de série: True Detective é uma antologia. Isso quer dizer que cada temporada apresenta uma história diferente, com personagens diferentes.
Dessa forma, além da vantagem de poder desenvolver a história e os personagens com calma ao longo de vários episódios, o escritor pode contar toda a história que ele tem de uma só vez, em um ciclo completo. Ele não vai precisar inventar novas situações para justificar/preencher novas temporadas, e nem vai ter que guardar algumas de suas melhores ideias para temporadas futuras.
Ele tem bastante tempo (a primeira temporada teve 8 episódios de aproximadamente 60 minutos cada) e pode escrever a melhor história possível. O fato de que a história da primeira temporada de True Detective se passa ao longo de 17 anos seria um prato cheio para fazer uma série de cinco temporadas, por exemplo.
Mas, nesse caso, o autor acabaria tendo que criar situações um tanto forçadas para manter o público interessado, e, caso não conseguisse, a série poderia ser cancelada antes da conclusão da história. Esse intervalo de tempo também é extremamente realista, pois é esse tipo de tempo que alguns casos no mundo real levam para serem resolvidos. Dificilmente um caso é resolvido rapidamente como em séries procedurais.
Dois outros destaques ficam para a ambientação na Luisiana e a trilha sonora. A cinzenta paisagem interiorana de pobreza e depressão econômica é cortada pelo verde das matas e das regiões de bayou, provendo um ambiente úmido, belo e, ao mesmo tempo, um tanto aterrador. É como se aquelas comunidades estivessem longe da civilização, e não há nada ali para protegê-las das “forças do mal”, ou da perversidade dos próprios homens.
Em relação à trilha sonora, não é nenhuma novidade que as séries atuais possuam trilhas marcantes que combinem perfeitamente com o tom de suas histórias. No caso de True Detective, um dos destaques é a canção de abertura, Far From Any Road, do The Handsome Family. Outro destaque é Young Men Dead, do The Black Angels. Por fim, temos a ótima The Angry River, feita especialmente para a série.
Mas True Detective é menos sobre um caso de assassinato e mais sobre a vida dos detetives que conduzem a investigação. A forma pela qual eles são apresentados ao público é outro motivo para o sucesso.
Martin Hart é um homem comum, e é por meio dele que nos é apresentada toda a hipocrisia e a conformidade de um homem comum. Ele é casado, possui duas filhas, e é um ótimo detetive da policia estadual. Em vários momentos, durante um depoimento para dois outros policiais, ele afirma que, a partir de uma determinada idade, um homem sem uma família é um homem perigoso. E também que um homem precisa de uma família para ter regras pela qual viver, para ter limites.
Isso não o impede de ter amantes; ou mesmo de encher a cara e invadir o apartamento de uma delas para agredir o homem que estava com ela, utilizando inclusive sua autoridade para se impor; ou mesmo de executar um suspeito desarmado e algemado; ou mesmo de espancar na prisão dois adolescentes que iam fazer sexo com sua filha, também adolescente. Em última instância, ele é uma pessoa comum em busca de felicidade, mas, também como uma pessoa comum, ele não sabe exatamente o que quer e seu comportamento errante e hipócrita põe em risco tudo o que ele possui.
Tudo isso faz dele um personagem interessante e profundo, um dos destaques da série, mas não tão diferente de muitos outros de outras histórias. Talvez ele seja ofuscado por seu parceiro, Rust Cohle, este sim uma novidade.
Rust Cohle é um niilista. Sua visão de mundo é metafísica e, ao contrario de Hart, ele se preocupa com questões existenciais e também com a natureza humana. Ele não tem família, nem religião, nem nada que o segure nesse mundo. Segundo ele mesmo, talvez o único motivo pelo qual ele se levante da cama pela manhã é que, assim como todo mundo, ele esteja programado para isso, para simplesmente continuar vivendo, mesmo sem saber o porquê.
Um dos motivos do sucesso da série é que este personagem dá vazão a ideias e questionamentos que muitas pessoas possuem, fazendo com que essas pessoas se identifiquem com esse personagem de uma forma com a qual elas não conseguem se identificar com nenhum outro. O único personagem do qual me lembro que possui alguma semelhança com Cohle é o jornalista em crise de A Doce Vida, e essa é uma ótima referência.
São as divagações de Cohle que dão à história um ar de, como li em algum lugar, terror existencial. Não sei se deveria, mas vou reproduzir aqui o meu monólogo favorito do personagem, que ele começa quando aponta para a foto de um cadáver:
É disso que estou falando. É isso o que quero dizer quando falo sobre tempo, e morte, e futilidade. Tudo ali são ideias maiores em funcionamento, principalmente o que é possuído por nós como sociedade para nossas ilusões mútuas. Depois de 14 horas ininterruptas olhando para cadáveres, são nessas coisas que você pensa.
Vocês já fizeram isso? Você olha em seus olhos, mesmo em uma foto, não importa se estão vivos ou mortos, você ainda consegue lê-los. Sabe o que você vê? Eles a aceitaram. Não no início, mas bem ali naquele último instante. É, sem dúvida, alívio. Sabe, porque eles estavam com medo e agora eles viram pela primeira vez o quão fácil é simplesmente deixar ir. Sim, eles viram. Naquele último nanosegundo, eles viram o que eles eram.
Você, você mesmo, todo esse grande drama, tudo isso nunca foi mais nada do que uma solução improvisada feita de presunção e vontade burra, e você poderia simplesmente deixar ir. Finalmente saber que você não tinha que ter se segurado com tanta força. Perceber que toda a sua vida, todo o seu amor, todo o seu ódio, todas as suas memórias, toda a sua dor, foi tudo a mesma coisa. Foi tudo o mesmo sonho, um sonho que você teve dentro de uma sala trancada. Um sonho de que você é uma pessoa. E como em muitos sonhos, há um monstro no final.
Sobre esse trecho, que se passa no episódio de título The Locked Room (A Sala Trancada, em tradução livre), o criador e único escritor da série, Nic Pizzolatto, diz o seguinte:
A Sala Trancada se refere ao tipo de mistério que parece, em sua superfície, não possuir solução. E essa definição da sala trancada se traduz nas digressões metafísicas de Cohle, que diz que a sua vida são as coisas pela qual você passa, e, mais do que isso, é o que você pensa sobre essas coisas. E isso acontece dentro da sua cabeça, e a sua cabeça é uma sala trancada. Ninguém nunca vai entrar nessa cabeça, ou morar nessa sala, ou ver as coisas que essa pessoa vê.
As pistas que eles encontram sobre o caso são misteriosas e cheias de referências à algum tipo de mitologia que os detetives não entendem, mas que os fãs identificaram como referências à coletânea de contos The King in Yellow, de Robert W. Chambers. Isso levou parte dos espectadores a prestarem mais atenção na investigação do que nos detetives em si, o que os levou muitos a ficarem um pouco decepcionados com a conclusão dessa temporada.
As pistas e referências são muito boas para dar algum insight sobre a loucura do assassino, mas isso não muda o fato de que ele seja apenas mais um criminoso perturbado como muitos por aí. O que realmente está sob investigação aqui é o mistério da experiência humana; nossas vidas e por que estamos aqui. É isso o que esses detetives querem descobrir, e o mais importante são as conclusões às quais eles chegam depois de todos esses anos de vida.