A Série Westworld e o Último Jogo da Humanidade


* Contém SPOILERS da série Westworld

Esses prazeres violentos tem fins violentos,
E morrem em seu triunfo, como o fogo e a pólvora,
Que, ao se beijarem, se consomem.
William Shakespeare, Romeu e Julieta

Em sua terceira temporada, a série Westworld teve seu estilo e sua ambientação radicalmente alterados. As mudanças desagradaram a muitos fãs, para os quais a série havia abandonado o que havia de melhor nela. Porém, o mundo estabelecido na terceira construiu o alicerce para momentos incríveis na quarta temporada, que é uma das melhores da produção. Dessa vez, é a humanidade que precisa percorrer o “labirinto da consciência” e se libertar de uma “prisão”.

Mas qual a natureza desse encarceramento?

Para começar, os robôs anfitriões “honram” seus criadores e dão continuidade ao ciclo de violência e trauma no qual a humanidade sempre viveu. Assim como os anfitriões haviam sido escravizados antes, os seres humanos passam a ser escravizados pelos anfitriões, que representam a mais nova forma de vida inteligente no planeta Terra.

serie westworld 1HBO Max · Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes

Não é de se estranhar que a grande responsável por esse processo de escravização seja justamente uma anfitriã traumatizada pela violência. Na terceira temporada, Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood) criou cópias de si própria e as colocou nos corpos de outros personagens para avançar os seus planos. Uma vez que os papéis dessas cópias estavam concluídos, ela as abandonou para morrer nas mãos de seus inimigos, como se tivessem sido meras ferramentas que cumpriram o seu propósito.

Porém, a cópia que estava no corpo de Charlotte Hale (Tessa Thompson) não apenas sobrevive, mas também vê a família da Hale original sendo morta pela bomba que foi plantada para ela. Conhecida como Halores, essa versão de Dolores já havia desenvolvido sentimentos pela filha e pelo ex-marido da Hale original, ficando severamente abalada pela morte dos dois. Isso a faz divergir da personalidade da Dolores original, que é quem ela culpa pela morte da família de Hale.

Para ajudá-la, Halores cria uma versão anfitriã do Homem de Preto/William (Ed Harris), que é tão frio e violento quanto o Homem de Preto original. Quando o conhecemos na primeira temporada, ele já é um homem violento, pessimista e paranoico, o que aumenta a surpresa causada pela revelação de que ele é a versão mais velha do honesto e idealista William (Jimmi Simpson).

No momento de sua “transformação”, um desiludido William deixa de ver significado nos sentimentos que ele tinha por Dolores e na experiência humana como um todo, se tornando obcecado com o jogo do parque Westworld. Inicialmente, suas ações são orientadas a tornar o jogo mais real, com consequências reais para os “jogadores” que se aventurarem no parque.

Na segunda temporada, seu objetivo é destruir o “jogo”, que ele, um dos diretores da corporação responsável pela atração, passa a considerar seu maior erro. Porém, os anos de violência e paranoia começam a pesar, e William passa a ter dificuldades para distinguir a realidade da ficção. Isso o leva a um de seus momentos mais chocantes, quando ele mata sua própria filha por achar que ela na verdade é um anfitrião feito para enganá-lo.

Na terceira temporada, diante do fato de que Dolores conseguiu escapar de Westworld, William se coloca como um “salvador da humanidade”. Mas, depois que ele tem um completo colapso nervoso, ele diz ter descoberto seu “verdadeiro propósito”, o que envolve eliminar todos os anfitriões. Na quarta temporada, esse propósito fica mais claro ou evolui para algo diferente: o último jogo de William é o jogo da sobrevivência do mais apto, instruindo todos os seres humanos a matar uns aos outros, o que inclui os anfitriões que eles encontrarem.

Dessa forma, toda a trajetória do Homem de Preto pode servir como uma metáfora para os impulsos autodestrutivos da humanidade. Ideias como essa já foram exploradas no filme Aniquilação, que, em alguns momentos, discute a nossa tendência a tomar atitudes prejudiciais para nós mesmos. Em Westworld, essas tendências ocorrem em nível de espécie, com o Homem de Preto servindo como uma encarnação dos nossos piores impulsos.

Outras produções que exploram esses e outros tipos de impulsos humanos são as séries Raised By Wolves e Sandman.

série westworld 3

A destruição causada pelo Homem de Preto é a ameaça que assombra Bernard (Jeffrey Wright). No final da terceira temporada, Bernard descobriu que a inteligência artificial que controlava a humanidade não estava evitando um colapso, mas sim adiando-o, levando-o a partir para o mundo virtual do Sublime em busca de uma solução para o inevitável fim.

No final da quarta temporada, esse colapso chega, e a solução encontrada por Bernard é que a humanidade continue existindo apenas no mundo virtual, por meio dos anfitriões que já estavam lá e das versões criadas/conhecidas por uma nova versão de Dolores.

Porém, talvez essa seja uma solução que só funcione na fantasia. A nossa crença em entidades sobrenaturais e em inteligências artificiais conscientes só existe devido a nossa crença na dualidade entre mente e corpo. Em outras palavras, nós acreditamos que nosso corpo é a nossa parte física e a nossa mente é a nossa parte lógica ou consciente. Assim, nós poderíamos existir fora do nosso “corpo físico”, com nossa consciência e personalidade sendo transferidas para outras “mídias”.

Mas o que nós chamamos de “mente” não é apenas um amontoado de dados armazenados fisicamente em nosso cérebro. Quem (ou o quê) nós somos depende de um complexo conjunto de funções biológicas que resultam em nossas ações e em nossas personalidades.

A ideia de separar mente e corpo parte das experiências aparentemente diferentes que nós temos quando interagimos fisicamente e quando interagimos intelectualmente com o mundo ao nosso redor. Mas as interações intelectuais ou sentimentais que temos com as outras pessoas ou com outras ideias dependem das características físicas do nosso corpo, que precisa captar os sinais externos por meio dos nossos cinco sentidos e que influencia o nosso comportamento por meio de hormônios e neurotransmissores, por exemplo.

Independente dos detalhes técnicos, o último jogo que a humanidade da série Westworld precisa jogar não é o da sobrevivência do mais apto, mas sim o da sobrevivência da espécie, que é o jogo que nós já estamos jogando. Bernard e Dolores esperam que essa nova humanidade tome as decisões certas para viabilizar a continuação da espécie. Porém, há um paradoxo nessa ideia.

Dolores tem a oportunidade de reiniciar a humanidade sem os ciclos de trauma e violência que levaram sua primeira versão ao inevitável fim. Porém, se ela fizer isso, essa humanidade não será realmente uma continuação da nossa, já que ela não terá que lidar com os traumas causados pela nossa História. Por outro lado, se ela recriar a humanidade com um altíssimo grau de fidelidade à versão original, por que esperar que esses novos seres humanos tomariam decisões diferentes?